quinta-feira, 9 de outubro de 2014

PASTORAL DA CULTURA| «As mulheres e a desigualdade: Que caminhos?»

de Pablo Picasso

«As mulheres e a desigualdade: Que caminhos?» é um artigo  que integra a edição n.º 21 do “Observatório da Cultura”, da Pastoral da Cultura,  da autoria de  Ângela Barreto Xavier,  Investigadora do Instituto de Ciências Sociais,  da Universidade de Lisboa,  aqui o divulgamos:


As mulheres e a desigualdade: Que caminhos?
Um olhar rápido sobre estatísticas recentes mostra-nos que no nosso país há aproximadamente mais 500 000 mulheres do que homens, mais 20 000 mulheres matriculadas no ensino superior, mais 250 000 mulheres com uma licenciatura completa (formando-se, por ano, e em relação aos homens, o dobro de médicas e o quádruplo de enfermeiras), mais 200 mulheres a doutorar-se cada ano. Números impressivos e que dão conta do que tem significado, para muitas mulheres portuguesas, viver em democracia.
Todavia, estes números ocultam tanto quanto iluminam. Desde logo porque há menos 300 000 mulheres do que homens no mercado de trabalho. Depois, porque os homens ganham mensalmente, e em média, mais 200 euros do que as mulheres. Ainda, porque são escassas as mulheres nos lugares cimeiros das instituições para as quais trabalham. Apesar de haver mais mulheres doutoradas e com o ensino superior completo, nas universidades são muitos mais os docentes que são homens. E é igualmente significativo que 2/3 dos deputados da Assembleia da República sejam homens! 
Este breve diagnóstico revela mais coisas. A par do tradicional papel de esposas e mães, o regime democrático comportou uma dignificação social da mulher. Mas apesar da importante redução das assimetrias que essa dignificação social comportou, a desigualdade de género permanece, já que as mulheres continuam a ter uma presença bastante inferior à dos homens nos lugares de decisão, sendo frequentemente constrangidas por decisões nas quais a sua voz não se faz ouvir. Esta tendência agrava-se quando cruzamos estes dados com outras variáveis, tais como a classe e a imigração, contribuindo para instituir uma falha dolorosa no seio da comunidade das mulheres. Efetivamente, a assimetria é muito menor quanto mais elevada é a classe social, ou quando a mulher está plenamente integrada e reconhecida na e pela sociedade portuguesa. Também entre as mulheres há quem seja capaz de se fazer ouvir - caso da autora destas linhas -, e quem não o consiga.
Como agir perante estes cenários? Como reduzir simultaneamente a desigualdade de género e a desigualdade de classe e de “etnia”, de modo a construirmos uma sociedade verdadeiramente inclusiva, justa e representativa? Estaremos verdadeiramente dispostos a lutar pelos direitos de (todas) as mulheres? Como reduzir o fosso que ainda separa homens e mulheres, mas também mulheres ricas e mulheres pobres, mulheres portuguesas e aquelas que não o são? E como é que a Igreja pode (e deve?) contribuir para a redução deste fosso, sendo que a radiografia que se faz para Portugal também se aplica, por vezes com maior propriedade, à Igreja (sobretudo se atendermos aos muitos impedimentos que as mulheres enfrentam dentro da comunidade eclesial)?
Porque historiadora de profissão, tenho alguma sensibilidade à construção histórica de um senso comum sobre o “lugar das mulheres” na família e na sociedade, e a sua expressão normativa e institucional. Ora, tal como aconteceu no Portugal dos últimos quarenta anos, a imagem da mulher foi-se alterando de forma muito significativa nos últimos séculos, aceitando-se hoje como normais situações que seriam outrora impensáveis. Na verdade, poderia até dizer que, na atualidade, o domínio do impensável até se inverteu. O que é impensável para boa parte das mulheres é elas não poderem ser muito mais do que aquilo que já alcançaram, sem isso ser entendido como algo de anormal, que desequilibra e que inquieta, que põe em causa a ordem tradicional das coisas, que revela uma ambição desmesurada; sendo, por isso mesmo, indesejável. O que é impensável é que lhes sejam vedados vários caminhos por mera imposição masculina.
Estou ciente de que é muito mais fácil colocar questões e elaborar discursos do que oferecer boas respostas. Ainda assim, mesmo não havendo respostas nem óbvias nem imediatas, e mesmo que (para já) não haja boas respostas, acredito que é relevante levantar questões, uma, duas, muitas vezes, e apontar caminhos possíveis.
Um dos caminhos que está a ser trilhado é o que pugna por políticas públicas que permitam que as várias identidades que mulher desempenhou no passado e desempenha no presente não sejam mutuamente excludentes (tal como elas não o são entre os homens), permitindo a conciliação, nomeadamente, entre obrigações laborais muito exigentes e uma vida familiar que requer uma ainda maior dedicação.
Um segundo caminho é continuar a lutar pela representação equitativa de género nos fóruns de tomada de decisões, seja na sociedade civil, no mundo da política, como também na comunidade eclesial. Estamos ainda longe de alcançarmos comunidades em que as discussões e as decisões relativas às mulheres sejam por elas partilhadas, e não violentamente impostas por mecanismos de decisão que tendem a excluí-las, ou a subrepresentá-las. Só quando alcançarmos uma maior equidade na representação e na decisão é que as mulheres se reconhecerão no que vai sendo decidido (sabendo, evidentemente, que não há, nem devem existir, posições completamente consensuais).
Um terceiro e inevitável caminho é a luta pela justiça social. É premente conseguir que mulheres pobres e ricas, portuguesas e não portuguesas possam aceder, de forma equitativa e autónoma, aos vários mundos de reflexão e ação, e sentirem que aí têm uma história própria, em vez destes caminhos serem apenas acessíveis às que estão socialmente mais bem posicionadas, e vedados à maioria das mulheres, tantas vezes relegadas para posições subalternas e multiplamente dependentes.
Para que tudo isso aconteça, as mulheres não podem estar sozinhas e apenas entre mulheres. Para que isso aconteça, é imprescindível que as mulheres (todas as mulheres) tenham os homens ao seu lado. Os seus pais, os seus irmãos, os seus maridos, os seus amigos, os seus filhos, os seus colegas de trabalho e os seus patrões. Os seus sacerdotes e os seus bispos.
A meu ver, não se trata de uma reivindicação. Mas sim, e apenas, da restituição da dignidade que se pressente desde as primeiras páginas da Bíblia, e que se torna inquestionável com a chegada de Cristo e com a maneira como Ele comunicou com (todas) as mulheres.

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