Mais um discurso de Mia Couto: como sempre, a nosso ver, luminoso. Um excerto:
«Discurso proferido por Mia Couto ao receber o título Doutor “Honoris Causa”, pela Universidade Politécnica de Maputo
(...)
Lembrou
Luis Bernardo Honwana os meus pais. E estou grato por essa lembrança que faz
justiça à história da minha família. Tudo o que sou vem daí, aquela é nascente
do meu Tempo e do tempo dos filhos, dos netos e dos que vierem depois. O mundo
em que nasci e me fiz homem alimentava-se do preconceito. Criava muralhas para
separar e graduar as raças. As muralhas não ofendiam apenas os que ficavam do
lado de lá. Os do lado de cá, convertiam-se eles mesmos em estereótipos.
Éramos, de um e do outro lado, diminuídos pelo medo e pelo desconhecimento.
Acreditamos que o efeito dos preconceitos raciais e tribais é o de tentar
desvalorizar uma outra raça. E isso é verdade. Esses preconceitos resultam
também numa outra pérfida consequência que é a negação da existência de pessoas
singulares, cada uma com a sua identidade própria. Eis o que faz o racismo, o
sexismo e o tribalismo: cada pessoa deixa de ser uma criatura única, passando a
ter a identidade do seu grupo. Deixa-se de ter um rosto, uma voz, uma alma:
passamos a ser identificados por um rótulo geral: os negros, os brancos, os
matsuas, os macuas, os do Norte, os do Sul. Fala-se de alguém e há uma voz que
diz: ah, já sei como ele é, conheço esses tipos.
Caros
amigos
Irei
falar sobre a erosão dos valores morais e de como pode um escritor ajudar na
reabilitação do tecido moral da sociedade.
Escolhi
este tema porque não conheço ninguém que não se lamente da perda de valores
morais. Este é um assunto sobre o qual temos um imediato consenso nacional.
Todos estão de acordo, mesmo os que nunca tiveram nenhum valor moral. E até os
que tiram vantagem da imoralidade, até esses, depois de lucrarem com da
ausência de regras, se queixam que é preciso travar a falta de decoro.
Um
dos caminhos que nos pode ajudar a resgatar essa moral perdida pode ser o da
literatura. Refiro-me à literatura como a arte de contar e escutar histórias.
Falo por mim: as grandes lições de ética que aprendi vieram vestidas de
histórias, de lendas, de fábulas. Não estou aqui a inventar coisa nenhuma. Este
é o mecanismo mais eficiente e mais antigo de reprodução da moralidade. Em
todos os continentes, em todas as gerações, os mais velhos inventaram
narrativas para encantar os mais novos. E por via desse encantamento passavam
não apenas sabedoria mas uma ideia de decoro, de decência, de respeito e de
generosidade.
Há
certa de trinta anos atrás Graça Machel – que era então Ministra da Educação –
convocou um grupo de escritores para lhes dizer que estava preocupada. Estou
preocupada, disse ela, estamos a ensinar nas escolas valores abstractos como o
espírito revolucionário, do patriotismo, o internacionalismo. Mas não estamos a
ensinar valores mais básicos como a amizade, a lealdade, a generosidade, o ser
fiel e cumpridor da palavra, o ser solidário com os outros. E ela pediu-nos que
escrevêssemos histórias que seriam publicadas nos livros de ensino. Graça
Machel tinha a convicção que uma boa história, uma história sedutora, é mais
eficiente do que qualquer texto doutrinário.
Eu
queria ilustrar o poder das histórias com dois pequenos exemplos. Nestes
próximos momentos partilharei convosco duas vivências e o modo como essas
experiências produziram em mim duradouras lições.
O primeiro episódio
– uma nação à procura de um hino
Ainda
há pouco entoamos nesta sala o Hino Nacional. Este hino tem uma história e eu
estou ligado a essa história. Aconteceu assim: no início da década de 80,
Samora Machel decidiu que o Hino Nacional então vigente deveria ser mudado. Ele
tinha razão: a letra era mais um louvor à própria Frelimo do que de uma
exaltação da nação moçambicana. Estávamos ainda longe do multipartidarismo, mas
Samora tomou essa decisão. E nessa maneira que era a sua, “requisitou” 4 poetas
e 5 músicos e fechou-os numa moradia na Matola com a incumbência de produzirem
não uma, mas várias propostas de hinos. Eu era um dos 4 poetas. Eram tempos de
guerra, a única coisa que havia nas lojas eram prateleiras vazias. Todos os
dias saímos de casa com uma única obsessão: o que trazer para comer para a
nossa família. Pois, nessa altura, de repente, estávamos numa casa com piscina,
rodeado de mordomias e servidos de comida e bebida. Confesso que nos primeiros
dias ficamos de tal modo fascinados que pouco trabalhávamos. Quando, a meio da
tarde, escutávamos as sirenes dos carros dos dirigentes nós corríamos para o
piano e improvisávamos um ar de grandes cansaços. Ao fim da tarde, eu e os meus
colegas entregávamos às nossas esposas que nos vinham visitar, recipientes com
a comida que cada um de nós tinha poupado durante o dia. E foi assim que, ao
fim de uma semana, produzimos uma meia dúzia de hinos que foram ensaiados por
um grupo coral e apresentados a uma comissão avaliadora. Havia duas propostas
que mereciam a nossa preferência: uma delas era esta que agora é o nosso hino
nacional, a Pátria Amada. A outra era baseada numa composição do maestro
Chemane e tinha um estribilho que dizia: “Pátria de heróis! Levanta a tua voz!
Viva Moçambique, povo unido, A estrela do amanhã brilhará!” O grupo coral que
apresentou esta proposta em vez de Pátria de Heróis cantava: “Pátria de arroz”
e a proposta ficou esquecida. (...)». Na integra aqui.