terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

LUISA DACOSTA morreu | «Sobretudo, incomoda-me partir com a certeza de que a parte mais esmagada deste mundo é a mulher»



Hoje é o funeral de Luisa Dacosta que morreu aos 88 anos. A nossa homenagem divulgando um texto seu  disponível  aqui,  donde (sublinhados nossos):  
«Lamento sair desta vida bastante desiludida. Por exemplo, em relação à alegria com que festejei o fim da II Guerra, a pensar que nunca mais havia guerras, e que vinha aí a solidariedade, a democracia e a liberdade para todos. Mas não. Estamos num mundo criminoso em que 70 por cento da população mundial não tem acesso à água, à comida, à saúde, à educação. Sobretudo, incomoda-me partir com a certeza de que a parte mais esmagada deste mundo é a mulher. Isso dói-me. A pessoa sai daqui a pensar que certas coisas pelas quais lutou já nunca mais aconteceriam, e afinal pioram. Nunca pensei que as mulheres se fizessem a elas próprias bombas. É preciso um desespero terrível e já não acreditar em mais nada, para se fazer uma coisa dessas. Isto significa que criámos um mundo que é imoral. Há uns que julgam que já viram tudo, que já sabem tudo, que já têm tudo, e há outros que andam a esgravatar, a ver se encontram umas sementes na terra. É uma coisa atroz. Nunca fui optimista, mas tão pessimista como agora, também não.
(...)
Uma das coisas que me custou bastante foi não saber andar com o arco. Os meus primos faziam grandes corridas com os arcos. No meu tempo as meninas eram levadas a não fazer certas coisas. Havia uma recomendação da minha tia, que dizia que "quando uma menina assobia, estremecem céus e terra".
(...)
Sou uma escritora marginal e bastante marginalizada, porque fiz sempre aquilo que quis, e só aquilo que quis. Tinha uma independência. Já sabia que morreria de fome se vivesse só dos livros. Era professora, algo que me dá muito gosto. É uma forma privilegiada de relação humana. Ainda hoje gosto muito de estar com os alunos. Tive crianças que passaram por dificuldades extraordinárias, mas a determinada altura vi que era capaz de escrever para eles. Ajudaram-me a escrever. Incluí no meu vocabulário algumas palavras criadas pelos alunos. A nossa língua é espantosa. Acho que temos uma língua privilegiada. É uma língua que tem dois tempos. Um para o tempo que se gasta, que é o estar, e um tempo para a eternidade, que é o ser. É das poucas línguas no mundo que tem isso. Depois temos uma coisa espantosa, miraculosa, que é poder conjugar pessoalmente o verbo no infinito. O infinito é o verbo fora do espaço e do tempo. Penso que é a única língua do mundo que consegue meter o tu dentro do eu. Quando digo "eu amar-te-ei", mete o "tu" e depois é que fecha o verbo. Temos essa possibilidade espantosa. A nossa língua é mitológica.
Hoje, para qualquer pessoa, é muito difícil escrever. Há bastantes censuras. Antes, havia uma e tinha nome. Cortavam-nos um artigo no "Comércio do Porto", mas tínhamos a "Vértice" ou a "Seara Nova". Havia maneiras de furar um pouco. Não estou, de maneira nenhuma, a defender a outra censura. O problema é que hoje há censuras económicas, censuras políticas, censuras partidárias, "lobbys" de interesses. Pertenci ao Conselho de Imprensa. Fiz dois mandatos. Deixei lá escrito que tinha lutado muito contra a censura de Oliveira Salazar, mas era uma. (...)
A vida ensinou-me que não podemos viver sozinhos. Ensinou-me que não podemos viver sem o bafo humano e que devemos fazer tudo para lutar por isso»Leia na integra.






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