Mensagem da SPA da autoria de Nuno Carinhas para
o Dia Mundial do Teatro 2015 (27 de Março)
Inventar a vida todos os dias – compor e ensaiar uma realidade com minúcia de autor, sem deixar que o acaso entre pela porta do cavalo – e acreditar nisso como sendo a grande verdade, que com urgência se propõe à partilha de todos, é o nosso mister.
Apesar de não sabermos do futuro do Teatro, podemos assegurar que está cheio de presente. Isso deve-se à tenacidade dos seus fazedores, aos que não desistem de querer. Eles, os herdeiros mais recentes das memórias mais antigas do mundo; eles, os que transportam o “à flor da pele” da humanidade, em palavras e silêncios que traduzem amores e ódios, reconhecimentos e humilhações, fraternidades e traições. Eles lidam com personagens que argumentam com inteligência, absurdez ou ridículo; que insultam, improperam e chacinam com crueza; que rogam e se compadecem por misericórdia e gratidão; que reclamam o fim de servidões e combatem pela dignidade; que duvidam.
No teatro – o lugar das Fúrias – exibe-se a beleza e a fealdade, o humano e o inumano, o luxo e a pobreza, o autoritarismo dos déspotas e a rebelião dos povos. Somos convocados para as viagens no comboio fantasma do tempo, dentro da máquina de todos os excessos: acende-se a luz no palco vazio, caixa dos sentidos onde cabem novas paisagens nascidas de todas as artes, para a construção da mais impura. Uma máquina que range de indignação perante as injustiças, as desigualdades e as indiferenças, o analfabetismo e a miséria. O teatro é lugar de obsidiante questionamento, do curso da História e das nossas pequenas histórias: de espectáculo em espectáculo, progredimos insatisfeitos de pergunta para pergunta, até acharmos aquelas – certeiras, justas – de que fala Almada: tão bem perguntadas que “se pensares um bocadinho tens já a resposta a seguir”.
Elaborando as suas ficções, os do Teatro resistem no meio de realidades sociais e políticas adversas, atentos ao revés e à festa, debaixo das bombas ou dos fogos-de-artifício, usando de uma força vital feita de inconformismo e fantasia que tem de ser experienciada à vista dos seus semelhantes, a solo ou em bando, mas em directo – mano-a-mano, corpo-a-corpo, de boca a orelha –, encurtando solidões. No teatro sussurra-se ou grita-se a língua que é linguagem saída dos corpos animados de vontade e de desejo. Aí se exerce a poesia, a retórica ou a conversa fiada do quotidiano. No teatro ouve-se falar sobre o que se ouve dizer ou escuta-se o que nunca se ouvira, desta ou daquela maneira.
Na sua infinita diversidade, o Teatro de Arte faz parte do património vivo através das novas dramaturgias e das traduções dos clássicos que vêm enriquecer a nossa língua em movimento, a verdadeira moeda de troca entre cidadãos, entre povos, entre culturas – no caso do Português, por esse mundo fora e a crescer. Urge fazer circular o nosso teatro, confrontando-o com outros públicos, abrindo espaço no mapa-mundo do saber.
O Dia Mundial do Teatro é uma chamada de atenção e homenagem a todos os que por ele persistem, que disso fazem prova de vida, todos os que falam, aqueles que o fazem e os que a ele assistem. Ir ao teatro é conceder-se a si mesmo tempo: um tempo que suspende a agitação dos dias utilitários para a partilha de histórias e suas possibilidades, sem nos alhearmos do presente e das lutas que se travam no quotidiano por uma comunidade mais justa, mais igualitária e mais feliz.
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