quinta-feira, 4 de julho de 2019

TEATRO | «O DEUS DAS MOSCAS | «Pedro Alves criou um grupo apenas feminino, que põe em relevo o carácter representacional do espetáculo, e em causa as noções e os atributos lineares de género» | 5 JULHO A 31 AGOSTO 2019 | SINTRA



A adaptação para o teatro foi feita por Nigel Williams.
 Foi esta a versão que Pedro Alves utilizou para este espetáculo
FOTO CATARINA LOBO



Do trabalho de João Carneiro na Revista E do semanário Expresso desta Semana:

Pedro Alves adaptou e encenou, para o Teatromosca, “O Deus das Moscas” com um grupo exclusivamente feminino, no cenário ‘natural’ da Quinta da Ribafria
TEXTO JOÃO CARNEIRO
«Publicado em 1954, “O Deus das Moscas” foi o primeiro romance de William Golding, e acabou por ser um dos grandes romances do século XX. O autor recebeu, em 1979, o James Tait Black Memorial Prize, em 1980 o Booker Prize, e em 1983 recebeu o Nobel da Literatura. “O Deus das Moscas” foi adaptado ao cinema por Peter Brook, em 1963; por Lupita A. Concio (filme para televisão) em 1975; e por Harry Hook, em 1990. A adaptação para o teatro foi feita por Nigel Williams, e apresentada pela Royal Shakespeare Company em 1996. É esta a versão teatral autorizada, e é esta que Pedro Alves utilizou para conceber o espetáculo que encenou para o Teatromosca.
No início há um grupo de rapazes, numa ilha, depois de uma guerra, uma evacuação, um desastre de avião — um acontecimento e um passado recentes algo sombrios, cuja memória é apagada pela descoberta da paisagem, do lugar, da ilha. “De tudo o que pode existir de maravilhoso no mundo, nada se pode comparar ao mar” — a descrição inicial inaugura uma espécie de visão edénica do mundo, a partir de perceções e de descrições da natureza. “Ou seria a juventude?”, a pergunta surge logo, para também logo ser recoberta com mais descrições. A ilha, as palmeiras, as copas das árvores; a água transparente e cristalina, os cardumes de pequenos peixes sempre em movimento, os verdes mais ou menos escuros, mais ou menos profundos; as rochas, os desfiladeiros, os penhascos, as pedras aguçadas; “no ar, borboletas voltejam excitadas”; finalmente, e perante “um horizonte circular de água”, a exclamação quase extática: “tudo isto é nosso”. “Nosso” começa por ser de Ralph e de Piggy; um louro, doze anos, “… ainda não era mesmo um adolescente. Mas uma delicadeza na boca e nos olhos não traíam qualquer maldade”; o outro “um miúdo gordo… mais baixo do que o rapaz de cabelo alourado. Óculos espessos. Casaco de inverno”. Encontram uma concha, um búzio, uma coisa que Piggy sabe ser valiosa. Noutros lugares seria cara, custaria muitas libras; ali vai servir para chamar os outros rapazes. Uns são mais novos, há dois gémeos, e há o grupo de Jack, o chefe do coro, os que surgem “vestidos de preto. A passo certo”; têm emblemas prateados nos chapéus, Jack tem um emblema dourado.
De início tentam organizar-se. Tratar da água, fazer abrigos. Precisam de fogo, e para isso os óculos de Piggy vão ser preciosos. Aos poucos, contudo, as tentativas de organização vão-se esboroando; as chefias deixam de ser respeitadas, as tarefas são desleixadas, o fogo apaga-se ou provoca incêndios; os do coro tornam-se caçadores, matam porcos; na desordem progressiva, vão acabar por matar dois rapazes, um deles Piggy, o último sinal de racionalidade na ilha; o medo, a crueldade e a violência passam a ser as forças primordiais.
Pedro Alves criou um grupo apenas feminino, que põe em relevo o carácter representacional do espetáculo, e em causa as noções e os atributos lineares de género. Fez decorrer a ação pelo espaço da Quinta da Ribafria, dividindo em dois, a certa altura, os grupos de atrizes e de espectadores que, no entanto se reencontram na sequência final. Distribuiu as palavras, as frases, os diálogos, o texto, por vozes singulares, por grupos, ou por elementos corais. A progressão da ação é, assim, acompanhada pela progressão física de atrizes e de espectadores pelos diferentes espaços da Quinta, com início no exterior, junto ao edifício principal. A casa, os jardins, os caminhos, os lagos, um universo outrora primorosamente estruturado, até nos seus efeitos de natureza redesenhada, e hoje em dia no mais constrangedor abandono, são transfigurados pelo impacto das ações, das vozes, das presenças das artistas; ainda nem tudo estava pronto quando assistimos a um ensaio, mas era palpável já a estranha inquietação que se desprende quer romance, quer da sua versão teatral.
Rita Rocha Silva, Mariana Fonseca, Cirila Bossuet e Margarida Coelho, intérpretes de algumas das personagens centrais, integram um grupo de 17 atrizes. A banda sonora é de Noiserv, o som é de Reinaldo Gonçalves, os figurinos são de Isadhora Müller e o desenho de luzes é de Carlos Arroja. (...)».

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