Recorte do Semanário Expresso/Revista E de 19 ABRIL 2019 |
«Era verão e as intempéries acalmavam nessa altura. Teresa Marques e Maria de Jesus, as duas únicas mulheres presas numa cadeia de homens, entraram ali com diferença de meio mês no mesmo ano de 1942, a primeira a 29 de junho, a segunda a 16 de julho, dia de Nossa Senhora do Carmo. Se terão rezado não se sabe, se eram católicas também não. Chegaram as duas de Souto da Carpalhosa, no distrito de Leiria, e não anteviam o que aquele mar era capaz de lhes fazer. O mar e o vento, as gaivotas e as traineiras. Um som permanente, enlouquecedor no meio do silêncio e da incógnita sobre o futuro.
As condições de vida eram as mais duras. Os presos de Peniche, atirados para uma cela coletiva, sobreviviam à custa de um carácter forte e determinado, sempre pronto a lutar pelo mesmo ideal que os colocara atrás das grades. Assim resistiam, entre castigos e espancamentos. Não havia muita distinção entre eles. Eram os presos políticos do regime de Salazar, aqueles de quem a PIDE tomava conta.
A cadeia era ainda uma fortaleza do século XVI com pequenas adaptações. E a humidade corroía os ossos. Teresa e Maria, ambas domésticas — a primeira casada e a segunda ainda solteira —, não sabiam o que fazer ali dentro. A primeira tinha 42 anos, a segunda 34. Tudo indica que se conheciam e que se tornaram unha com carne no interior daquele forte militar. Ficaram as duas juntas numa única cela.
(...)
A falta de comida e a má qualidade dela tornaram-nas mais frágeis. Viver entre homens também não era fácil. Não tinham privacidade e as condições de higiene eram “péssimas”, diz Domingos Abrantes, antigo preso de Peniche e hoje membro da Comissão de Instalação dos Conteúdos e Museografia (CICAM), responsável pela instalação do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, a inaugurar dia 25, no âmbito das comemorações dos 45 anos da revolução. “A cadeia não estava preparada para receber mulheres”, continua. As mulheres antirregime eram encaminhadas para a Cadeia das Mónicas, no Forte de Caxias, onde cumpriam penas várias (também os delitos comuns lá iam parar). E essa, sim, “era uma prisão que contemplava com muito mais dignidade as necessidades femininas”, diz o antigo preso José Pedro Soares, que também por lá passou e via as mulheres no recreio, no lado oposto ao dele. Mas não ali, em Peniche, com o mar e o vento, o vento e o mar, as gaivotas e as traineiras, ruídos de sempre no silêncio da cela. (...)».
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