segunda-feira, 16 de julho de 2012

MULHERES NA CULTURA - MARIA KEIL

Autorretrato, 1941, óleo sobre tela, 53 x 45 cm - Maria Keil

Maria Keil faleceu recentemente, no mês passado. Ao mesmo tempo que  queremos colocá-la nas «nossas» mulheres na cultura, e dar-lhe visibilidade junto das leitoras e  dos leitores do Em Cada Rosto Igualdade, a intenção é, naturalmente, prestarmos-lhe agora a nossa pequena  homenagem, serenamente.  
E comecemos com uma passagem de uma entrevista de João Paulo Cotrim (que pode ler na integra neste endereço):Na sua infinita modéstia, nada lhe obedece à vontade. As "coisas", como o mundo, foram ter com ela, que se limitou a acolhê-las. Pediam-lhe uma ilustração, ela fazia. O marido precisava de resolver as paredes, ela pintava azulejos. Queria exprimir uma ideia, desenhava um móvel. E as "coisas" são a realidade, que persegue ainda na sua longa carreira nas artes gráficas, na ilustração, no azulejo, na pintura. Um olhar que é, como a artista, de simplicidade e elegância desconcertantes. E de uma extraordinária agudeza. E continuemos ainda com essa entrevista: Nasceu em Silves (9 de Agosto de 1914), mas veio para Lisboa muito cedo. Esta é, portanto, a sua cidade? Agora já é, mas tenho uma certa pena de não ser Silves, de não estar lá. Cheguei aqui com 15 anos, e aqui casei [em 1933] com aquele lindo moço que era o Chico [o arquitecto Francisco Keil do Amaral], um rapaz bonito e culto. Foi uma sorte ter entrado naquela classe de gente. A minha família não tinha mais cultura do que um vulgar burguês de província.


E duma outra entrevista ao Expresso que começa assim: Lembro-me dos cheiros da minha infância. Figos, alfarroba, orégão. Recordo-me das gulodices, das estrelas de figo, do queijo de maio, que era a melhor coisa do Mundo. É um queijo de figo que se faz durante o inverno e come-se no 1.º de maio. Não havia eletricidade. E de onde se retirou também: «(...) Estive presa em Caxias, porque isto era tudo exagerado. Fomos 50 pessoas ao aeroporto esperar D. Maria Lamas, que vinha de um congresso da Paz. Parece que era um crime terrível. Assim que o avião parou, as pessoas que estavam à espera dela foram para a cadeia. Não havia motivo nenhum. Era só exagero e, se calhar, medo. Fomos para dentro de uma carrinha e levaram-nos para Caxias. Ficamos lá um mês. Foi uma boa experiência. Éramos 12 mulheres fechadas numa cela. Fartámo-nos de trabalhar. Algumas mandaram vir os livros e os cadernos, com os quais estudavam e ensinavam umas às outras. Eu pedi trabalhos que tinha em mãos em casa. Aquilo não foi doloroso, o que não quer dizer que as coisas sejam assim. Porque havia lá outros presos, nomeadamente mulheres, que comunicavam com pancadinhas. Algumas de nós que já tinham estado presas, conheciam aqueles sinais e traduziam. Havia lá mulheres completamente isoladas, mas sabíamos muito bem o que lhes faziam. É uma coisa horrível. Aquela gente não merecia o mais pequeno respeito. Aquilo marcou-me, porque entrei no sítio e vi as coisas como elas eram.
Não tive uma atividade política ativa. Fazíamos o que era possível, sem nos envolvermos em células ou coisas similares, porque não éramos capazes de ter esse grau de envolvimento. Dávamos o apoio possível. Não tínhamos condições, nem conhecimentos, nem técnicas de luta que eram necessárias. Nesse sentido sabíamos que só poderíamos fazer mal se fossemos para coisas muito ativas.
(...)
Há coisas que passaram por mim, das quais já não me lembro. Mas há sempre memórias que ficam, como o 25 de abril. O meu marido estava muito mal. Morreu no ano seguinte. Morávamos junto à Casa da Moeda. Eu só via o que se avistava da janela, que por acaso era um sítio de passagem.Era uma coisa linda. Era fantástico. Tive tanta pena de não poder ir para a rua. Nesse dia, fui comprar um cravo. Coloquei-o numa jarra junto ao meu marido. No final do dia estavam lá mais de 70 cravos. Tanta gente que lá passou. As pessoas mais incríveis. Ele dizia para o José Gomes Ferreira: "Eu vi, eu ainda vi".


E continuemos a recordar Maria Keil com o livro que ela distinguiu, de sua autoria (ilustradora)  e de Aquilino Ribeiro, na entrevista referida que deu a João Paulo Cotrim, com a seguinte sinopse: Conjunto de lengalengas e toadas infantis em prosa rimada, de características muito rurais, destinadas à neta Mariana. A memória do narrador oferece imagens marcantes como o despertar da Natureza numa manhã de sol, a confecção do pão, os ovos da galinha pedrês, o canto do rouxinol, a beleza do prado na Primavera, a raposa, o burro a caminho do mercado, os bezerros que pastam no lameiro, o arraial popular, a joaninha, a liberdade que se respira no campo, o apanhar grilos, o ir aos ninhos e enriquece-as com rimas infantis que conhece. A partir da comparação da vida com um rio, fala-nos da chuva, da neve, da caça, do trabalho do pastor e recorda fábulas, a Nau Catrineta e outras histórias da sua infância. Saiba mais. E lá pode ver esta maravilha, mais legível:
E dando seguimento a esta pequena homenagem a mais uma das nossas Mulheres na Cultura, nada melhor do que referir a exposição que se fez sobre a sua obra de ilustradora na Biblioteca Nacional que está assim descrita:
Maria Keil, ilustradora
9 de Setembro a 20 de Novembro de 2004 - Entrada livre.                                              
 A Biblioteca Nacional consagra uma mostra à faceta de ilustradora de Maria Keil, numa exposição que se desenvolve em dois espaços distintos:Na galeria do 1.º andar estão expostas ilustrações para obras como Começa uma vida, de Irene Lisboa; Páscoa feliz, a novela de estreia de José Rodrigues Miguéis; Folhas caídas, de Almeida Garrett, na edição prefaciada por José Gomes Ferreira; e Metade comédia metade drama, de Francisco Keil do Amaral, entre muitas outras. Da sua obra gráfica podemos ainda ver os cabeçalhos que desenhou para algumas das secções da Seara Nova. Na Sala de Referência, a exposição patenteia ilustrações na esfera da literatura infanto-juvenil, área em que é reconhecido o carácter inovador de Maria Keil. Expõem-se algumas das ilustrações para livros como O palhaço verde e Segredos e brinquedos, ambos de Matilde Rosa Araújo; Histórias da minha rua, de Maria Cecília Correia; A Primavera é o tempo a crescer, O Outono é o tempo a envelhecer, O Verão é o tempo grande e O Inverno é o tempo já velho, todos de Maria Isabel César Anjo; e A banhoca da baleia, de Alexandre Honrado. Podem ainda apreciar-se alguns estudos executados para as ilustrações de O livro de Marianinha, de Aquilino Ribeiro, cujos originais publicados desapareceram.
No âmbito da exposição é editado um roteiro, que inclui reproduções de desenhos da autora.
E, abençoada web, há uma memória da exposição que pode ser visitada aqui, e aí apreciar, por exemplo, grafismos como este:
E terminemos com o que Centro Nacional de Cultura, assinado por Guilherme de Oliveira Martins, escreveu aquando da sua morte:  «Maria Keil, que nos deixou esta semana, é uma referência fundamental na arte portuguesa do século XX. Foi ela que deu ao azulejo moderno o lugar na cidade que antes não tinha. O painel da Avenida Infante Santo “O Mar” ou as decorações no Metropolitano de Lisboa são exemplos fundamentais – em que a sobriedade, o talento e a inteligência se aliam com grande beleza. Não podemos falar do azulejo português no século XX sem referir Maria Keil. Além disso, foi uma das nossas melhores ilustradoras, merecendo uma especial alusão a colaboração que manteve com Matilde Rosa Araújo. Um elevado sentido poético e uma humanidade genuína ligam-se a um equilíbrio estético incomparável. O Centro Nacional de Cultura recorda o exemplo de Maria Keil e a sua entrega à vida e à criação artística».

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